Depois de ter lido a belíssima crónica de José Saramago que transcrevo abaixo, não resisti a demandar, na internet, a aguarela de Albrecht Durer tão minuciosamente descrita naquela.
Experimentem ler o texto e simultaneamente lançar os olhos sobre a aguarela…
Com os olhos no chão
O céu é todo feito de rosa e amarelo em partes iguais. O pintor esqueceu as fáceis memórias do azul e amontoou ao fundo umas névoas espessas que filtram a luz sem direcção nem sombras que rodeia as coisas e torna visível o outro lado delas, como se tudo fosse simultaneamente opaco e transparente. Depois baixou a cabeça e mergulhou o rosto na terra até que os olhos, as pálpebras inferiores, os cílios arqueados e trémulos, ficassem rentes à superfície de um chão feito de pasta vegetal, limosa, e ao mesmo tempo vítrea, como um tufo transportado através de todos os ardores e frios da volta maior do mundo, como um escalpe arrancado inteiro.
E agora que se reflecte na água única que cobre os olhos, polidos e macios como esferas velhas de marfim, a teia vegetal que é a única vida aquém da cor amarosa do espaço, o pintor vai minuciosamente defender da morte, do vento rápido, da inundação que derruba, os caules finíssimos, as folhas rasteiras e gordas, as cápsulas cartilaginosas, as palmas minúsculas das gramíneas. Todas estas ervas hão-de ter nome nas classificações botânicas, todas hão-de ter cem apelativos diferentes consoante os lugares onde nasçam e os homens que os habitem. Aqui, porém, o tempo não começou, os homens são mudos, os nomes não existem, a linguagem está por inventar. Só a mão encaminha no papel o gesto entendedor do mundo.
Um pouco para a direita, algumas folhas largas, envolventes, curvadas como pás, encerram na escuridão interior não se sabe que criança perturbadora, enquanto outra folha igual, já despegada, como se tivesse sido mordida à flor do chão, descai para trás. Mas as que estão de pé condensam uma energia insolente, uma ameaça de devoramento daquela que revira para o céu baço e morno uma face em que as nervuras já se decompõem. Entretanto, uma erva cilíndrica levanta-se como bainha de onde nasce uma folha única, delgada em espada, enquanto outra folha gémea se lança para fora e para cima, ap+ontando para fustes delgadíssimos, sustentadores de cavhos leves que talvez venham a ser aveia em tempos futuros, ou já o são, sem nome ainda.
Para a esquerda, balouçam (balouçariam) sobre caules secos uma espécie de pagodes com frestas a toda a volta, uma eflorescência cor de laranja, e também uns filamentos pilosos como barbas, tudo supondo ou sugerindo promessas de destilações secretas para os grandes sonhos dos futuros homens assustados.
Pairando abaixo, sem parecer ligar-se a nenhum apoio, há um chuveiro de pequeninos pontos amarelos, que são flores, mas de que nada mais se vê que a palpitação microscópica. Poderiam ser insectos, mas esses foram excluídos daqui para que nada se sobrepusesse à serenidade, à lentidão das seivas, à permanência das fibras. Logo ao lado, nascendo directamente da terra, folhas que parecem esfarrapadas são como árvores que povoarão os bosques das fadas e dos duendes, quando os homens precisarem de animar de desejos e medos a impassibilidade vegetal.
Os olhos do pintor rasam agora a superfície do chão, o musgo que é luva sobre a terra húmida, cobrindo as flatulências da água que vagamente ressumbra sob o peso da vegetação. Não há mais que ver entre o musgo e o céu, ou tudo está por ver ainda porque as ervas estremeceram todas, fez-se e desfez-se dez vezes a rede cruzada dos caules, oscilaram as folhas. Tudo estaria novamente por contar, e é impossível o relato. Guarda-se pois a imagem primeira enquanto o rosto do pintor se afunda mais, e os olhos descem ao chão vítreo, onde as raízes rompem caminho como pequenas mãos multiplicadas em dedos longuíssimos, donde nascem outros dedos mais finos, ventosas minúsculas que sugam o leite preto da terra. Os olhos do pintor descem mais ainda, estão já longe do corpo e vogam no meio da fermentação esponjosa da turfa, entre bolhas de gás, olhos ímpares que lentamente incham e depois rebentam de lágrimas.
A mão do pintor passa sobre o papel, dispondo a tinta em manchas que parecem abandonos, avança com a fixidez de movimento de um astro em órbita ao longo da necessidade de uma haste de erva, volta a cobrir de mais névoas o céu ainda liso de sol e de nuvens. Entretanto, os olhos cerram-se cansados, a mão suspende o último gesto, e depois, enquanto as pálpebras voltam a abrir-se, o pincel desce devagar e depões no lugar predestinado uma levíssima camada de tinta, quase invisível, mas sem a qual todo o trabalho teria sido falso e inútil.
Não há nada mais vivo do que esta aguarela de Albrecht Durer, aqui descrita por palavras mortas. Com os olhos no chão.
Experimentem ler o texto e simultaneamente lançar os olhos sobre a aguarela…
Com os olhos no chão
O céu é todo feito de rosa e amarelo em partes iguais. O pintor esqueceu as fáceis memórias do azul e amontoou ao fundo umas névoas espessas que filtram a luz sem direcção nem sombras que rodeia as coisas e torna visível o outro lado delas, como se tudo fosse simultaneamente opaco e transparente. Depois baixou a cabeça e mergulhou o rosto na terra até que os olhos, as pálpebras inferiores, os cílios arqueados e trémulos, ficassem rentes à superfície de um chão feito de pasta vegetal, limosa, e ao mesmo tempo vítrea, como um tufo transportado através de todos os ardores e frios da volta maior do mundo, como um escalpe arrancado inteiro.
E agora que se reflecte na água única que cobre os olhos, polidos e macios como esferas velhas de marfim, a teia vegetal que é a única vida aquém da cor amarosa do espaço, o pintor vai minuciosamente defender da morte, do vento rápido, da inundação que derruba, os caules finíssimos, as folhas rasteiras e gordas, as cápsulas cartilaginosas, as palmas minúsculas das gramíneas. Todas estas ervas hão-de ter nome nas classificações botânicas, todas hão-de ter cem apelativos diferentes consoante os lugares onde nasçam e os homens que os habitem. Aqui, porém, o tempo não começou, os homens são mudos, os nomes não existem, a linguagem está por inventar. Só a mão encaminha no papel o gesto entendedor do mundo.
Um pouco para a direita, algumas folhas largas, envolventes, curvadas como pás, encerram na escuridão interior não se sabe que criança perturbadora, enquanto outra folha igual, já despegada, como se tivesse sido mordida à flor do chão, descai para trás. Mas as que estão de pé condensam uma energia insolente, uma ameaça de devoramento daquela que revira para o céu baço e morno uma face em que as nervuras já se decompõem. Entretanto, uma erva cilíndrica levanta-se como bainha de onde nasce uma folha única, delgada em espada, enquanto outra folha gémea se lança para fora e para cima, ap+ontando para fustes delgadíssimos, sustentadores de cavhos leves que talvez venham a ser aveia em tempos futuros, ou já o são, sem nome ainda.
Para a esquerda, balouçam (balouçariam) sobre caules secos uma espécie de pagodes com frestas a toda a volta, uma eflorescência cor de laranja, e também uns filamentos pilosos como barbas, tudo supondo ou sugerindo promessas de destilações secretas para os grandes sonhos dos futuros homens assustados.
Pairando abaixo, sem parecer ligar-se a nenhum apoio, há um chuveiro de pequeninos pontos amarelos, que são flores, mas de que nada mais se vê que a palpitação microscópica. Poderiam ser insectos, mas esses foram excluídos daqui para que nada se sobrepusesse à serenidade, à lentidão das seivas, à permanência das fibras. Logo ao lado, nascendo directamente da terra, folhas que parecem esfarrapadas são como árvores que povoarão os bosques das fadas e dos duendes, quando os homens precisarem de animar de desejos e medos a impassibilidade vegetal.
Os olhos do pintor rasam agora a superfície do chão, o musgo que é luva sobre a terra húmida, cobrindo as flatulências da água que vagamente ressumbra sob o peso da vegetação. Não há mais que ver entre o musgo e o céu, ou tudo está por ver ainda porque as ervas estremeceram todas, fez-se e desfez-se dez vezes a rede cruzada dos caules, oscilaram as folhas. Tudo estaria novamente por contar, e é impossível o relato. Guarda-se pois a imagem primeira enquanto o rosto do pintor se afunda mais, e os olhos descem ao chão vítreo, onde as raízes rompem caminho como pequenas mãos multiplicadas em dedos longuíssimos, donde nascem outros dedos mais finos, ventosas minúsculas que sugam o leite preto da terra. Os olhos do pintor descem mais ainda, estão já longe do corpo e vogam no meio da fermentação esponjosa da turfa, entre bolhas de gás, olhos ímpares que lentamente incham e depois rebentam de lágrimas.
A mão do pintor passa sobre o papel, dispondo a tinta em manchas que parecem abandonos, avança com a fixidez de movimento de um astro em órbita ao longo da necessidade de uma haste de erva, volta a cobrir de mais névoas o céu ainda liso de sol e de nuvens. Entretanto, os olhos cerram-se cansados, a mão suspende o último gesto, e depois, enquanto as pálpebras voltam a abrir-se, o pincel desce devagar e depões no lugar predestinado uma levíssima camada de tinta, quase invisível, mas sem a qual todo o trabalho teria sido falso e inútil.
Não há nada mais vivo do que esta aguarela de Albrecht Durer, aqui descrita por palavras mortas. Com os olhos no chão.
(in A Bagagem do Viajante, Editorial Caminho)
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